Está na recta final BUONAR da KARNART, ali na Av. da India, no local onde estava a antiga casa e atelier de Lagoa Henriques, que visitei, nos idos de 97. Fiquei impressionado com o espectáculo, ele corresponde a muitas coisas que gosto no trabalho que a KARNART vem criando sobre a performance, sobre a instalação, a perfinst, assim lhe chama o Luís desde que em 96 criou este neologismo (a história está no Dr.Google, vão lá, esta riqueza conceptual, este rasganço de não se conformar com o que já existe).
E fiquei impressionado porque ele consegue ser intrinsecamente teatral, naquilo que o teatro tem simultaneamente de mais rigoroso, o figurino, o penteado, a caracterização, a atitude, o movimento, a voz da actriz, Inês Vaz, mas ao mesmo tempo integra um jogo de liberdades possíveis, que decorrem da instalação, o jogo do participante-espectador não só no espaço físico, também no espaço relacional com a actriz e a sua deambulação.
Cada um de nós cultiva áreas de sensibilidade teatral próprias e eu confesso que a minha sempre esteve mais próximo dos lugares fronteira, limite, quase o teatro não teatral. E por isso admiro tanto o trabalho da KARNART (e a coragem com que tiveram de defender esta inscrição, coragem que em tempos muitos dissabores lhes trouxe) já que aqui componentes mais formais tornam-se também de conteúdo. Estamos ali dentro e a nossa movimentação, o modo como olhamos as peças deste Museu das Curiosidades da Karnart (...) quase diria, a teatralidade com que olhamos as coisas e as pessoas, a gravidade com que nos deslocamos, entram naquilo a que, por alguma condescendência ainda poderíamos chamar espectáculo.
Alargam-no, expandem-no.
Esta imensa liberdade do participante-espectador, tem um contraponto: o rigor da encenação e representação. E não é sempre que esse rigor se manifesta de forma exuberante. Há momentos chave. O início por exemplo. É de uma tocante sensibilidade e intensidade o início deste espectáculo. Inês Vaz é simplesmente magnifica na sua condição de intérprete. Ficamos agarrados, ficamos agarrados por aquele lado extremamente teatral do movimento, da fala, do figurino, da luz, da música, da simplicidade com que se amplia o jogo, seja com a luz que a atriz transporta e que contribui para a estranheza do figurino, seja para o jogo que ela estabelece com uma janela.
Todo este jogo profundamente teatral em que nós somos reduzidos à condição de espectadores acontece num plano superior, um andar elevado. Depois a actriz desce, faz-se cicerone, nós participantes.
E aí o distanciamento desloca-se da convenção teatral atrás descrita e vai para uma zona muito subtil: o permanente e multifacetado jogo que o texto provoca.
Esse jogo tem várias dimensões: por um lado o do humor. As relações que resultam da alusão que os diferentes objectos têm sobre a vida e obra de Michelangelo, levam-nos a um jogo de cumplicidade imediata com as propostas mais absurdas.
E essa dinâmica de jogo leva-nos para uma outra dimensão teatral, a lúdica. Já estamos lá dentro do jogo e nem reparámos.
Instalámo-nos no jogo.
Depois o texto traz-nos um lado quase obsessivo da necessidade de constituir história, a história da Karnart também, mas essencialmente a importância dos mais pequenos gestos e movimentos.
É minucioso o texto. E essa minúcia cria uma relação quase antagónica entre o instante, o espontâneo, e o trabalho de datar, de referenciar que nos remete para uma estranheza.
Não percam, se puderem, claro, porque dadas as características o espectáculo tem lotação muito reduzida, vinte pessoas.