Fanga I

Primeira ideia, o privilégio de uma linguagem teatral rica, diferente, experimental. A desejada e necessária diversidade no tecido teatral. Todo o acontecimento gira na essência do fenómeno teatro, num intenso ritual de particular dramaturgia, muito estimulante para a plenitude dos sentidos. Como é imagem de marca desta companhia, estamos perante uma rigorosa e produtiva selecção de objectos, em jogo de escalas que tonificam a imagem das palavras de Redol. Atmosfera que vai evoluindo no jogo pausado e irrepreensível dos actores, Daniel Moutinho, Valentina Parravicini, Paula Só, Nuno Veiga e Inês Vaz (personagens, manipuladores performers, sei lá...) em figurinos que, sem a tentação da ilustração, nos envolvem insistentemente num perfume medieval, pano de fundo deste trágico retrato neo-realista do Ribatejo. Pelo deambular labiríntico, que funde ou separa actores e espectadores, emergem laivos de Juan Rulfo, em retratos similares de um México profundo, até pela luminosidade com sucessivas penumbras de mundos remotos. Pela nave ecoam ruídos, de perto e longe, ecos que surgem do chão ou das paredes, latidos de cães fundidos com sons martelados pelas socas ou botas no pavimento. Todo o espaço está geometricamente moldado pela madeira dos tectos, escadas e pilares, esculpido numa banda sonora que acompanha ou sublinha as palavras de Redol; vislumbramos tantos fragmentos musicais, de José Afonso, do Sérgio Godinho, de Nino Rota, e talvez Morricone, Rita Pavone. Os percursos dos actores e dos espectadores confluem num espaço vital, um quadrado “A Eira”, onde ao longo de todo o espectáculo uma paciente coreografia faz evoluir extraordinária composição de belas mantas tradicionais coloridas: instalação, altar de interpretação das histórias, reinvenção de objectos. No fim, um rico mapa tridimensional, instalação que perdura para lá do espectáculo, qual pedaço de um museu sobre uma história de “Senhores vivendo da terra sem nada lhe darem. Servos fecundando a terra sem nada receberem”. Tudo num compasso de tempo “perdido”, os homens exibindo seus laivos machos, as mulheres servas e vergadas, tão curvadas sobre o solo como em “As respigadoras” de Millet ou, segundo esta criação, seguindo gravuras de Manuel Ribeiro de Paiva. Se reconhecemos objectos ou elementos cenográficos de outros espectáculos da Karnart é exercício suplementar para quem sobrevive vendo teatro, o de entender como o bom teatro tem de ser também laboratório da experimentação. Diremos também que neste ”romance em cena” se cumpre o ideal do espectador. A expectativa gerada, as descobertas numa verdadeira “Obra Aberta” (Umberto Eco), a tão ambicionada e primitiva cumplicidade cena-público num rigoroso ritual de proximidade sem nunca ousar quebrar a convenção teatral e o enriquecimento da memória na permanente inquietação, luta contra o esquecimento. Uma autêntica recompensa, a de sair e poder guardar para sempre imagens tão ricas que, sem dúvida, vão perdurar na memória. FANGA foi uma extraordinária experiência teatral, por momentos numa atmosfera de urgência, para preservar identidades e falar do nosso mundo mais imediato, a partir da literatura fundamental de língua portuguesa. Obrigada/ Obrigado Karnart.

Em primeiro lugar, interessou-me imenso a disposição cénica proposta. Interessa-me sempre muito criar esse convite à intimidade, à proximidade, à mobilidade, à interação (direta e/ou indireta) ao espectador. Interessou-me a desaceleração e o respeito pelo tempo que predominou, permitindo criar um espaço para a introspeção e para o processamento dos estímulos que íamos recebendo. Senti que o espetáculo era quase como o fazer de um puzzle composto por muitíssimas peças. Neste sentido, cada gesto, por mais subtil que fosse, era uma afirmação. Os quadros que se iam compondo, transportaram-me muitas vezes para a infância. Como se sentisse uma tentativa de construção, instalação e regresso a um universo infantil, ao mesmo tempo que é exposta uma narrativa dura, crua, real, mas apresentada de uma forma extremamente poética e imaginativa. Interpretei que as correntes de ferro que delimitavam certos espaços da ação, se relacionassem com a sensação de prisão das personagens, relativa à dureza dos seus quotidianos e rotinas e ao peso da obrigatoriedade, bem como aos constrangimentos impostos pelo contexto ditatorial. Senti que de alguma forma a narrativa me transmitiu o respeito pela terra, pela origem, pela pureza. A valorização do trabalho na terra, da terra, sobre a terra. De forma a não permitir que a realidade das pessoas rurais caia no esquecimento e que se banalize a violência intrínseca. Violência essa que foi apresentada de uma forma quase expressionista. Desta maneira, existiu, a meu ver, uma elevação da mesma, que a acabou por tornar também bela. Interessou-me o facto de o desenho do espetáculo ser bastante coreográfico, tornando-o muito claro e preciso. Em geral, enquanto espectadora, senti que o espetáculo me transmitiu uma melancolia esperançosa, que teve como resultado algo que interpretei como a libertação final das personagens, no momento em que sobem e se despedem de nós, de si mesmos, da sua tradição, através do vidro. Por último, termino a minha apreciação com a citação de uma frase usada pelo Rui Chafes, que associo ao espetáculo Fanga: "A maravilhosa violência da vida que nunca pede desculpa".

Saí do espectáculo repleta, a precisar de digerir tudo o que tinha visto. Foi tema de conversa até casa. Partilhámos emoções sentidas, dúvidas, interpretações e todo o trabalho por trás do que nos foi apresentado. Ainda hoje há muita coisa que não compreendi, mas a riqueza do espectáculo, a imensidão de detalhes, continua presente na minha memória. Houve um momento que me perguntei que horas seriam mas depois perdi completamente a noção do tempo. Senti a dureza daqueles tempos, a sua repercussão na forma como as pessoas se relacionavam. Mas senti também uma curiosidade enorme por todos aqueles objectos. Quando o "tour" começou senti-me dividida. Queria continuar focada na voz off mas ao mesmo tempo precisava de me aproximar e prestar bastante atenção para conseguir ouvir porque tudo estava a ser dito muito baixinho. Senti-me transportada para outro universo. O final trouxe-me memorias da época da canção italiana e foi como uma brisa depois da densidade Fanga. Eu já esperava uma abordagem não convencional, apenas não imaginava como. Acho que o que mais me marcou foi isso mesmo. Numa altura em que a cada esquina nos deparamos com o "fast everything" é uma lufada de ar fresco encontrar espaços de "slow living". Vivenciais, que nos fazem pensar, questionar e enriquecem as nossas vidas. Mais uma vez obrigada.

"Fanga" é uma muito interessante e inovadora 'encenação' onde o texto de Redol prende o espetador desde o início bem como todos (e são muitos) os objetos que 'preenchem' o perfinst (também excelente é a música escolhida). A história de Manuel Caixinha, o ganhão dos campos da Golegã que, por uma vez, foi 'fangueiro' lembrou-me a história, que ouvi do meu avô Zé, do 'homenzinho' (coitado) que, no termo da vila de Seda, arrendou, uma vez, uma parcela de terreno à família de lavradores Teixeira (nos 'tempos da miséria', miséria moral e material, nos tempos do Estado Novo, nos tempos do fascismo). Contou-me o meu avô Zé que, uma vez, um ano, um 'homenzinho' (coitado) achou por bem arrendar um terreno (para a lavoura) dos muitos que pertenciam aos abastadíssimos Teixeiras. Entre o cómico e o trágico, contava o meu avô que os últimos tostões com que o 'homenzinho' (coitado) pagou a última 'fatia' da renda vinham cheios de 'zague' (aquele 'bolor verde' que se agarra às moedas esquecidas em qualquer fundo de gaveta ou velha carteira). O 'homenzinho' (coitado) deve ter andado a esgravatar todas as gavetas da casa para conseguir pagar a última renda.

Uma longa viagem performática visual e sonora a partir do romance de Alves Redol (1911-1969) com inspiração nas gravuras de Manuel Ribeiro de Paiva (1907-1957). Um retrato do mundo rural ribatejano da época. Um país miserável, injusto e cruel, misógino e machista, cheio de magoas e sexualidades reprimidas, afogadas no álcool que desaguava, muitas vezes, em violência doméstica. A KT presenteia-nos com uma experiência imersiva, em género de "audio-livro-ilustrado”, recorrendo a coisas com memórias. O espaço cénico, repleto de objetos e artefactos do mundo rural: mantas e tapetes, rendas e chitas, peças de artesanato variadas, bonecos de louça e plástico, animais em miniatura, obras de Arte Popular portuguesa que fazem parte do imenso espólio da Karnat e que os performers/actores transportam, manipulam e organizam de forma estética, criando uma espécie de "banda-desenhada-em-movimento-lento" em permanente diálogo com o texto. Aquele universo aparentemente belo e bucólico, no pormenor esconde monstruosidades. A dramatúrgica da imagética remeteu-me para a obra de Paula Rego; na verdade, também ela viveu e pintou aquela mesma época. Parabéns a Todxs!

Realmente sem palavras diante de uma beleza tão tocante. A potência dos objectos (e sua escolha) é realmente tocante. Mais do que acompanhar racionalmente os acontecimentos, somos levados a sentir a profundidade do trauma, a secura e a aridez de um contexto familiar em que a casa (e seu espaço) estão longe de representar um lar. Sei bem como é a sensação de não estar nunca em casa, porque a sua materialidade é insuficiente, e o seu afecto (ou a falta dele) é o que nos constitui. No fundo, somos instados, desde a infância, a dar significados do que se passa à nossa volta, mas muitas vezes os acontecimentos não carregam um sentido. Camadas e camadas de traumas lesam os desejos que não se concretizam. Os objectos, enquanto testemunhas, têm mais a dizer, nesse sentido, sobre o inexplicável. Que saibamos santificar o que é mais profano, senão só nos resta o suicídio.

Sobre o manuseamento da memória. É raro assistir a um momento em que a história é tão bem construída com recurso às mãos. Pelo sábio uso das mãos, somos encaminhados dentro de um mundo, primeiro masculino depois feminino, onde nós somos os visitantes de um gabinete de curiosidades transportado de um universo paralelo, estranho, exótico. Que nem cientistas extraterrestres analisamos, um a um, uma a uma, as ideias que o autor número um passou ao autor número dois. Somos o terceiro elemento-autoral que, em conjunto com os autores vivos do momento (os actores), o trabalho da Fanga nos propõe. Um monumento da inteligência artesanal e da observação da vida como ela foi (como ela ainda é e vai continuar a ser).

Alves Redol entra-nos coração dentro para nos mostrar como as dificuldades, desafios do seu tempo, continuam actuais. Luís Castro e o seu pelotão de actores/personagens invadem as nossas almas, espicaçando a reflexão sobre este mundo que se torna cada vez mais estranho. E fazem-no com a sabedoria de uma gentileza tocante. Fanga é um projecto de arquitectura de emoções, onde o sentido de humor é a porta da casa, onde somos muito bem recebidos... Gostei muito. Diverti-me ainda mais. Obrigada a todos!